JUSTIÇA
Se existem dois adultos para serem alimentados e uma galinha que vai servir de alimento, é justo que cada adulto coma metade da galinha. Se existe um adulto e uma criança, é justo que o adulto tenha direito a uma parte maior e a criança a uma parte menor.
A natureza é regida por leis absolutas que visam o equilíbrio entre todas as partes, e que são justas. No entanto, a justiça, mesmo natural é relativa. O equilíbrio justo só pode existir entre partes iguais cujos opostos se complementam, mas quando as partes são diferentes, a justiça para uma pode ser injusta para outras, apesar de todas contribuírem para o equilíbrio global da vida. Aqui, a justiça que prevalece é a das partes cujas forças sejam superiores — se a raposa tem duas lebres para comer, mas só uma é suficiente para saciar o seu apetite, a lebre que vai ser comida, se pensasse, consideraria injusto ser comida ela e não a outra, já que eram iguais; a raposa não iria deixar de comer porque morreria de fome, nem comeria as duas porque morreria empanturrada; também não comeria metade de cada uma, porque ao matar as duas ficava sem alimento para uma próxima refeição; assim, comer uma das lebres ao acaso é a maior justiça possível ainda que injusta para uma lebre; também a raposa servirá de alimento a seres vivos superiores e a lebre se alimentará de inferiores; mas a lebre nunca comerá a raposa porque na natureza tudo tem a sua ordem que é intransponível, mesmo parecendo injusta.
Poderá então concluir-se que as injustiças da natureza são inevitáveis e contribuem para o desenvolvimento da mesma, podendo assim tornarem-se justas se considerarmos a natureza no seu todo.
E com o homem, por ser filho da natureza, acontece exactamente a mesma coisa. Uma criança também é um ser humano, mas se o adulto lhe der a parte menor da galinha, aquela limita-se a comer essa parte porque, além de não ter a noção de justiça, não teria outra alternativa porque o adulto é mais forte que ela e domina-a.
A justiça é a divisão dos bens em partes justas, mas quem considera como é que as partes são justas é quem detém o poder. Quem tem mais força é quem domina e é quem determina o que é a justiça, como é quem faz as leis. E naturalmente fá-las de acordo com os seus interesses. É assim em todos os aspectos da sociedade humana, desde a economia à família, passando pela política.
Em todos os lugares onde se encontrem pelo menos duas pessoas conscientes — porque a justiça só faz sentido quando em consciência, pois não se consideram as opiniões de quem não se encontra em juízo perfeito — existem duas concepções diferentes de justiça. E prevalecerá aquela que for mais forte, com base nas capacidades de argumentação e de coacção ou em último recurso de força física.
A justiça é também uma das criações psicológicas causadas pela consciência, com influência das heranças culturais do passado, e das ideologias adoptadas, ou criadas pelos seus defensores. Está em permanente transformação evolutiva, conforme as novas realidades sociais e humanas — até ao século XIX, seria justo castigar o escravo que desobedecesse ao seu senhor, actualmente será justo punir o senhor que possua um escravo. Qualquer assembleia governativa aprova regularmente leis que determinam que certos actos e omissões passam a ser crime ou deixam de o ser.
Para além da justiça criminal, que visa defender a sociedade em geral, existem outras formas de justiça regulamentadas pelos diversos códigos — civil, comercial, eclesiástico, militar — ou não regulamentadas, mas subentendidas pela ética, moral, usos, costumes e tradições.
O sentido da justiça tem tido uma progressão que partiu do irracional, inconsciente e desumano, tornando-se cada vez mais racional, consciente e humano, podendo-se concluir que quanto mais juízo, mais justiça.
E só com justiça se viverá numa sociedade equilibrada, com o máximo possível de igualdade, dignidade, fraternidade e liberdade. Mas isso implicará responsabilidade, respeito e até alguma submissão e resignação. E este é que é o problema, porque, para alguém ganhar outrem tem de perder, e se é certo que o mundo é de todos, também é certo que todos desejam o poder sobre ele. E se a natureza nos dotou de um sentido de justiça, muito antes nos dotou também de um sentido de ambição.
Este é o nosso único mundo e nele viveremos naturalmente com justiças e injustiças, desejando a justiça ambicionada, só possível com a ambição justa.
INCONSCIENTE
Entende-se por inconsciente toda a actividade existente no nosso cérebro que está fora do nosso domínio racional.
Tudo aquilo que nós fazemos sem nos apercebermos que estamos a fazer, tal como respirar, ver, ouvir, tactear, cheirar, saborear, dormir, sonhar, etc; e todos os sentimentos físicos e emocionais como sentir dor, sentir frio e calor; sentir fome, sede e sono; sentir cansaço, comichão e arrepios; sentir admiração, medo e repugnância; corar, transpirar, tremer, suspirar, bocejar e chorar; sentir prazer e ódio; sentir gosto, desejo, saudade e compaixão; sentir amor; sentir constrangimento, arrependimento e orgulho; sentir excitação e alegria, depressão e tristeza; tudo isto e muito mais são reacções produzidas no nosso corpo devido a ordens dadas pelo nosso cérebro inconscientemente, embora posteriormente possamos ter consciência disso.
Os sentidos podem ser usados por nós conscientemente ou inconscientemente — podemos procurar uma coisa para a ver ou podemos ver uma coisa que nos desperta interesse sem a termos procurado — mas os sentimentos, sensações ou emoções são reacções originadas inconscientemente. É o inconsciente existente no cérebro que determina o limite máximo de temperatura que o corpo pode receber, e ao atingir esse limite “dispara um alarme” que avisa a consciência que se tem que evitar o calor. Assim como para todos os limites do corpo. Se não obedecermos conscientemente às ordens vindas do cérebro — produzidas do inconsciente para o consciente — acabamos por obedecer inconscientemente e inconscientes. O nosso inconsciente domina o nosso consciente e o consciente tem que respeitar as ordens vindas do inconsciente. Se o inconsciente nos diz “não podes mais”, e nós conscientemente dizemos “ainda posso mais”, poderemos ainda mais certamente, porque o inconsciente avisa-nos com uma margem de segurança, mas se continuarmos a insistir, o inconsciente continua-nos a avisar, e, ou paramos enquanto é tempo de recuperar ou atingimos os limites e ficamos inconscientes, ou podemos até morrer.
O inconsciente humano é formado por duas grandes vertentes sentimentais. Existem os sentimentos físicos que são memorizados no inconsciente através dos sentidos e que provêm da natureza, do homem como animal, irracionalmente e inconscientemente — como a dor, a fome, o frio — análogos a todos os outros animais, e existem os sentimentos humanos, também memorizados no inconsciente, e também através dos sentidos, mas estes passaram primeiro pelo consciente ou consciência. Os sentimentos humanos não são inatos como os físicos, mas pelo contrário, aprendem-se. Aprendem-se pela educação (cultura/religião) e valorizam-se ou não na consciência. Conforme se valorizarem na consciência, é também assim que ficam memorizados no inconsciente. E será conforme esses valores que o nosso inconsciente nos vai alertar. No entanto o nosso inconsciente regista tudo, e se nós agora pensarmos de uma forma oposta à que pensávamos no passado, em relação a determinado assunto, se o inconsciente tiver que nos enviar alguma mensagem relacionada com esse assunto, tanto pode corresponder ao que nós agora pensamos como opor-se. E uma mensagem oposta ao nosso consciente provocará conflito [dissonância cognitiva] — se eu não quero chorar e sei que não devo chorar perante determinada situação mas não consigo deixar de o fazer, significa que o inconsciente está a dominar.
Nós devemos respeitar o inconsciente, pois ele é poderosíssimo e não o devemos desafiar, pois ele vencerá sempre. É-nos muito útil na nossa protecção e equilíbrio pessoal, mas nós apenas devemos dar-lhe valor no que respeita aos avisos que ele nos faz. Devemos valorizar mais a consciência.
O nosso consciente, ao contrário do inconsciente, é tudo a que temos acesso pelo cérebro, em perfeito estado de raciocínio, vigilantes e alertas. Quanto mais perfeita, forte e segura, for a nossa consciência, mais estaremos conscientes, e logo, menos possibilidades damos ao inconsciente de intervir.
O inconsciente é importante porque nos defende dos perigos e nos guarda toda a informação do nosso passado. Tem uma capacidade infinita se pensarmos que cada segundo o nosso cérebro recebe dezenas de estímulos ou mensagens, permanentemente, sendo a maior parte delas armazenadas directamente na memória inconsciente, sem nos apercebermos delas.
Mas a nossa vida de humanos, racionais, e conscientes do que somos, tem que ser vivida com consciência, raciocínio, sabedoria, inteligência e saúde. Se nós não temos essa segurança que nos vem da consciência, deixamos caminho aberto para o inconsciente.
Teorias dizem que o nosso cérebro funciona noventa e cinco por cento inconscientemente e apenas cinco por cento conscientemente. Nós vivemos racionalmente com essa pequena percentagem. Se estivermos inseguros, deprimidos, doentes, ou em qualquer estado de consciência alterada, então o inconsciente apodera-se dela e manifesta-se, das mais diversa formas. E se não recuperarmos a consciência viveremos inconscientes, com uma personalidade alterada e demente.
O inconsciente é irracional, os animais também o têm. O consciente é racional, só os humanos têm consciência daquilo que são. É na racionalidade e consciência que nos diferenciamos dos animais, mas por muito racionais que sejamos, o nosso inconsciente será sempre maior que o nosso consciente, porque antes de nós pensarmos, já sentimos, e antes de nós sermos humanos, somos animais.
CASAMENTO
A nossa natureza animal impregnou-nos de uma necessidade biológica e orgânica, semelhante a todos os outros animais, cuja satisfação nos dá o maior prazer, e da forma mais normal e natural, visa a transmissão da vida e a sobrevivência da espécie.
O acto sexual, só normal e natural quando praticado entre um macho e uma fêmea, tendo em conta que o papel principal dos órgãos sexuais é a reprodução, e esta só é possível naturalmente entre um macho e uma fêmea, é o principal objectivo na vida de qualquer ser vivo, sendo ultrapassado apenas pelas necessidades vitais. É tão indispensável a copulação para a vida da espécie como a alimentação para a vida individual.
O ser humano, devido à sua superioridade, compreende uma sexualidade mais vasta, por não possuir ciclos sexuais estabelecidos naturalmente tão restritos como os outros animais, e por devido à sua capacidade mental conseguir condicionar essa sexualidade.
E assim criou regras para os comportamentos sexuais. Definiu como, quando, onde, com quem, porquê e com que frequência se deve copular. Cada sociedade, civilização, ou cultura, definiu as suas regras sexuais conforme os ideais, tradições, interesses, crenças, objectivos e conhecimentos próprios. Por exemplo, na civilização ocidental, de tradições judaico-cristãs, a copulação só devia existir entre um homem e uma mulher, casados para toda a vida, com o objectivo de terem filhos.
O casamento é então a palavra-chave que regula toda a actividade sexual de uma sociedade. Qualquer acto sexual está explícita ou implicitamente relacionado com o casamento, podendo ser aconselhável ou permitido e condenável ou proibido.
O vínculo do estabelecimento do casamento na sociedade foi de tal força — todos queriam casar porque todos queriam parceiros sexuais, porque só entre casados era permitido o acto sexual — que o próprio casamento acabou por ser a base de toda a organização social, nomeadamente para a criação de leis económicas, fiscais e criminais.
O casamento como regulador da actividade sexual só funciona em sociedades de repressão, pois limita o ser humano naquilo que ele tem de mais expansivo a nível comportamental. E assim, apesar do casamento, a actividade sexual sempre existiu fora dele, como prostituição, adultério, incesto, pedofilia, etc. Toda a história está documentada com casamentos incestuosos, filhos bastardos, mulheres adúlteras, sem esquecer, a conhecida, mais velha profissão do mundo.
O casamento apenas legaliza a sexualidade, e dependendo do regime social em que existe, pode permitir desde a poligamia até à homossexualidade.
A versão religiosa do casamento apenas existe porque todo o poder civil partiu do poder religioso e de todos os antigos regimes teocráticos nasceram os actuais regimes liberais e democráticos, como do antigo casamento religioso nasceu o actual casamento civil.
O casamento é um contrato mútuo em que os esposos se comprometem, voluntária ou involuntariamente, a cumprir várias cláusulas oficialmente legalizadas, prévia e socialmente estabelecidas, tais como perfilhação, distribuição de bens e heranças, coabitação, respeito, companhia e fidelidade. Os valores materiais são objectivos e facilmente se repõem na normalidade em casos de ilegalidade ou litígio, mas os valores morais e sentimentais são muito subjectivos e motivo de muito conflito, principalmente quanto à actividade sexual, porque, se o ser humano casa porque deseja sexo, continua a desejar sexo apesar de casado, porque já o desejava antes de casar, isto para além das diferenças individuais e de género.
No casamento apenas está em jogo o desejo sexual e a sua contenção ou satisfação, que depende da mentalidade de cada um, que por sua vez depende da realidade social. O restante — filhos, habitação, família — são consequências.
E muito mais importante que o amor, é o respeito e a compreensão.
AMBIÇÃO
A ambição é uma característica exclusiva do ser humano. Só o ser humano tem desejo de poder e por isso é ambicioso.
Os animais lutam quando está em risco a vida e a própria espécie. Os humanos lutam por razões muito menos categóricas. A razão fez o homem perceber que se for mais forte que o outro terá poder sobre ele. E da mesma forma que a “lei da selva” na natureza determina que o mais forte vence sempre, também na subentendida lei da competição, da concorrência ou do desejo permanente de poder, o mais forte vence sempre o mais fraco. A diferença existente entre a lei da selva natural e a “lei da selva humana” é que na primeira apenas existe uma força, bruta e natural, enquanto que na segunda existem diversas forças, que não são claras nem objectivas. Entre os animais as regras são claras e definidas pela natureza de uma forma só mutável pela evolução natural das espécies. Entre os homens as regras são permanentemente mutáveis e muitas vezes obscuramente definidas. As mais diversas estratégias são usadas para conseguir o mesmo objectivo, cada um conforme as suas diversificadas — naturais, adquiridas e artificiais – capacidades.
A inteligência humana, ou apenas a sua esperteza, transformou o homem, retirando-o da natureza e modelando-o de uma forma artificial, em direcção, por um lado, à perfeição sublime, e por outro, à existência trágico-cómica. De facto, o homem não é um animal, ou é um “animal” superior, mas quando comparado com todos os outros animais, apresenta diferenças que foram originadas na sua linguagem, devido ao seu cérebro superior, que por um lado são extraordinárias, como a capacidade de criação, de adaptação, de imaginação, de compreensão, etc; mas por outro lado são muito desmotivantes — o homem é o único animal que tem tabus, é o único animal que mata sem necessidade, é o único animal que se engana, e o único animal que mente, e é o único animal que se mascara.
E a ambição é um dos defeitos do ser humano, por ser a principal causadora de actos de baixo nível, que levam à indecência, à desonra, à desonestidade, à infâmia, à ignomínia, à falta de respeito, de carácter e de orgulho, que o diminuem para além dos próprios animais irracionais.
E se é certo que a ambição também contribui para o desenvolvimento humano, considerando que os ambiciosos são os que não têm quaisquer escrúpulos para ultrapassarem qualquer tipo de barreiras, não será menos certo que a vida de muitos seres humanos foi e continua a ser insuportável devido à exagerada ambição de outros.
Será também, desta forma, a ambição, uma prova de que existe uma espécie de dualismo na evolução humana, no sentido de que para existir o bom tem que existir o mau, pressupondo que a evolução humana partiu do animal não no sentido ascendente, mas num sentido alargado, tornando-se por um lado superior, mas por outro lado inferior ao próprio animal.